Qual histórias contamos

Sabrina Moura

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Iniciei este trabalho em meados de 2000, em uma excursão do ensino médio com o professor de História para a cidade de Redenção, a primeira do Ceará a libertar os escravizados, em 1883, cinco anos antes da abolição da escravidão no Brasil. Durante a visita ao Museu Negro Liberto, recordo que logo ao entrar na Casa Grande, a espaçosa residência da família branca, senti se materializar diante de mim parte da história narrada nos livros. Em seus vários ambientes, além de objetos e móveis bem conservados, retratos de família emoldurados nas paredes e em porta-retratos espalhados pela sala mostravam o luxo e a imponência de uma classe social. Na parte externa do Museu estavam as, hoje desativadas, máquinas de moer cana de açúcar, antes movidas a suor e dor. Na lateral esquerda da Casa, uma placa indicava que meu primeiro encontro com uma Senzala se aproximava. Tão extensa quanto a Casa Grande, não existia porta, na verdade, nada mais era do que um buraco pequeno por onde era necessário se agachar para chegar no interior. Resumia-se a um ambiente escuro, emanando pânico, servindo apenas de habitação para os morcegos. No espaço, encontravam-se ferramentas de torturas. Faltou-me o ar. O profundo mal-estar que tomou conta de mim me impediu de explorar a totalidade daquele lugar. Foi uma vivência impactante e inesquecível. Passados mais de 20 anos, retornei à Redenção com um grupo de fotógrafos: mais uma vez estava naquele Museu, agora sendo conduzida por uma guia local. Todos os cômodos estavam exatamente como eu lembrava, exceto a Senzala que, para minha surpresa, tinha sido modificada: a entrada agora era um portão que dava acesso a um ambiente iluminado. O ar circulava. O uso das ferramentas de tortura agora era ilustrado por pinturas, evidenciando pessoas negras sendo maltratadas. Seguindo pelos vãos da Senzala (dessa vez consegui seguir em frente), havia uma sala de paredes brancas com desenhos de entidades de religião africana. Identifiquei Exu, Ogum, Iansã e Iemanjá. O incômodo até então controlado descompensou com a repentina fala “essa sala é uma homenagem dos donos aos escravos”, complementada por “eles eram bons patrões”. Do resultado da minha indignação, surgiram imagens nas quais retrato as realidades de duas classes distintas que fizeram parte de uma história até hoje passível de romantização por muitos, que tentam ocultar ou até mesmo apagar a imensurável crueldade humana.

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Sabrina Moura
Fortaleza – CE
Fotógrafa
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